sábado, 19 de março de 2011

Eis a questão

É preciso que os médicos estejam conscientes de que eles não são donos do doente, mas servos do doente. Assim, uma das condições essenciais para o exercício da medicina é a humildade.
Por isso a classe médica tem de estar atenta. Os médicos não estão imunes a deformações de caráter

Quem faz o alerta não é um colega médico, mas o escritor Rubem Alves.
É fato que a afirmação soa como lugar-comum, mais uma das afirmativas idealistas – ou realistas? - a respeito do sacerdócio médico, mais ainda se tiver sido proferida por causa de uma decepção pós-atendimento médico, o que realmente ocorreu.
Ainda assim, é possível refletir e encontrar exemplos de que o lugar-comum da afirmação é, exatamente, devido à usualidade de situações que levam, com razão, a críticas e decepções por parte dos pacientes e da sociedade em geral. Basta abrir o jornal de hoje, ou assistir aos telejornais – não se esqueça, obviamente de subtrair o provável sensacionalismo tão habitual quando o protagonista do noticiário é o médico. Ou, alternativamente, fazer uma rápida pesquisa sobre as últimas denúncias feitas ao CRM.

A escolha da medicina como profissão carrega consigo esse porém do constante julgamento alheio. “Já não pertencerás a ti mesmo...”  é um dentre os inúmeros alertas inclusos nos famosos ‘Conselhos de Esculápio’, que também faz questão de lembrar que “ julgar-te-ão não pela tua ciência, mas por casualidades do destino”. Em um dos textos atribuídos a Hipócrates, após discorrer sobre as virtudes apropriadas para o médico que incluem disposição, sensatez, boa reputação e honestidade, o pai da Medicina revela: “pois acontece que essas coisas são tidas por agradáveis pelos doentes, e é preciso ter isso em vista”.
É inegável, pois, a necessidade de obedecer à máxima que afirma que “o médico tem que ter postura e compostura”.

 Fato é que alcançar “postura e compostura” pode ser um exercício voluntário, consciente e metódico. Na contingência da lida médica, é natural e automático assumir disposições que reflitam autoconfiança por vezes exagerada, alta resolutividade como objetivo máximo, e domínio inquestionável das decisões. Repetidas, tais disposições podem gradualmente levar à falta de humildade e, em nível máximo e, consequentemente, mais dificilmente reversível, à trágica dificuldade de julgamento próprio ou de aceitar o julgamento alheio como pretexto para reflexão sobre limitações e busca de mudança. Ainda que haja sentido no explorado jargão “caráter vem de berço”, as “deformações de caráter”, tal como a excelência, também são alcançadas por força do hábito.

Daí a necessidade de sobreavisos ocasionais, como o proferido por Rubem Alves, mesmo que soem como clichês.


No extremo oposto, encontra-se a humildade desmedida ou, caso prefira em outros termos, humilhação consentida , com perdão do exagero e, por isso, resguarde as devidas proporções. Outro escritor, Edilson Pinto, desta vez um colega médico, desabafa:
 “A nossa profissão há muito se encontra cega  (...)Se hoje, somos mal remunerados, trabalhando em condições desumanas, enfrentando uma enxurrada de processos na justiça civil e nos próprios Conselhos Regionais de Medicina (CRM’S), sem termos uma lei ainda que regulamente a profissão médica, etc. etc. tudo isso, é culpa única e exclusivamente nossa.
Um observador atento questionaria, pois, dizem as boas línguas, o médico está entre as primeiras colocações no ranking de “profissionais que mais reclamam”. Lanço o desafio: em seus próximos plantões ou no consultório, ou mesmo durante as aulas, observe seu colega médico ou ‘quase médico’, e até mesmo a si próprio. Reclamam(os) das condições,da remuneração insuficiente, do ambiente de trabalho, do paciente, da carga horária excessiva. Pura retórica, se estiver correta a premissa de que “insatisfações verdadeiras trazem consigo atitudes para modificá-las.” Isso posto, concluir que a classe médica em geral vive em profundo conformismo – substituto adequado para humilhação consentida – é uma questão de lógica. Mais uma vez, subtraia as desnecessárias e infundadas exaltações sensacionalistas e  as dignas exceções bem intencionadas e eficazes e surgirá, em preto-e-branco, o retrato completo: conformismo e resignação em níveis distintos permeando a classe médica. Combinados às indesejáveis “deformidades de caráter” já citadas, podem implicar num resultado antagônico à humildade e extremamente perigoso, especialmente se disseminado em grande escala: arrogância (que, não por acaso, rima com  ignorância, sinônimo de desconhecimento).


O eterno drama de Hamlet, “Ser ou não ser?” não é a questão. (In)felizmente, a solução não se encontra em um dos dois distantes - mas não tão distintos - pólos maniqueístas. O desafio é aprender a transitar entre ambas as possibilidades, alcançando o aclamado equilíbrio entre a inabalável certeza do ser e a anulação opcional do não ser.

Discernimento. Eis aí, portanto, a nossa grande questão. 




(Publicado no jornal RAIO-X, Ed. 8, jan/fev/mar 2011)

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