terça-feira, 21 de outubro de 2014

E eu, o que faço?

Tibério ergueu as sobrancelhas negras. O jovem não era um tolo,afinal. E disse:
- (...) Estou preocupado,Lucano,em fazer tudo quanto estiver em meu poder para mitigar o desgosto da família e honrar a memória do tribuno. Não compreendo tua carta. Nomeei-te médico-chefe oficial em Roma, contra o ranger dos dentes dos demais médicos, e tu me pediste que anulasse a tua nomeação. Eutou curioso para saber por quê.

Lucano corou. Não tinha noção de que fosse não só incrível,mas perigoso, aquilo de recusar o que César oferecia. Era como se uma mariposa tivesse desafiado uma águia. E disse,gravemente:
-Roma não precisa de mim. Foi isto que escrevi,majestade. Mas os pobres e os escravizados precisam de meus serviços nas províncias.

Tibério ficou silencioso. Seus olhos estreitaram-se e fixaram-se intensamente no rosto bonito do jovem. Mergulhou em seus pensamentos. Estava diante de algo que não podia compreender,e que lhe parecia louco. Pensou nos velhos filósofos que tinham ordenado que o homem tratasse bondosamente seu próximo. Também os sacerdotes dos templos de Roma exortavam as pessoas a terem bom coração, em nome dos deuses, e serem justas,honestas e misericordiosas. Entretanto,tudo aquilo não passava de palavrório. Nenhum homem mentalmente são acreditava em tal coisa, considerando o que o mundo sempre fora. A boca d eTibério curvou-se num sorriso.
-És médico,cidadão de Roma,filho adotivo de um grande e venerável homem e possuidor de fortuna - disse ele. - As portas dos patrícios e dos augustais estão abertas para ti. O que te ofereci foi apenas o limiar. E ainda assim,abandonarias tudo isso pela disposição de tratar de pobres, mendigos, e escravos sem valor?
Lucano respondeu:
-Sim,pois tudo o mais nada significa para mim.
-Por quê?
Lucano tornou a corar:
-Porque,de outra maneira,minha vida não teria sentido.

Tibério franziu as sobrancelhas. Que sentido havia na vida,a não ser poder, fortuna e posição? Refletiu em sua própria vida e suas feições estreitas revelaram dor involuntária.
(...)

Fixou os olhos em Lucano,que lhe falara como um menino de escola em significado da vida!
-A vida deve ter um significado? - indagou ele. - Mesmo os deuses não deram ao homem um sentido para sua existência.
-Sim,majestade, isso é verdade - respondeu Lucano, o rosto endurecendo-se. - Mas podemos dar às nossas próprias vidas alguma significação. A que dei à minha foi a de aliviar a dor e o sofrimento, salvar os moribundos,evitar a intromissão da morte.
-Com que propósito? - indagou Tibério. - A morte é fado comum a todos. Assim como a dor, seja do corpo ou do espírito. E que valem os pobres e os escravos,também?
-São homens - disse Lucano. - É verdade que dor e morte são inevitáveis. Mas a dor pode ser aplacada frequentemente e a morte pode se tornar menos desconfortável,ou ser adiada. Quem pode olhar o mundo dos homens sem sentir piedade e sem desejar confortá-lo?

trechos de "Médico e homens e de almas", capítulo 27

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