terça-feira, 28 de abril de 2009

Escolhas


Todo mundo sempre te admirou: você é inteligente, esperto. Vai prestar vestibular pra Medicina. “Coitadinho, estuda tanto!”, costumam dizer. Você estuda bastante, sim. Talvez não tanto quanto eles pensam, mas...
E, afinal, você passa no vestibular. Na federal! É o curso mais concorrido, numa universidade conceituada: a vaga que muitos outros gostariam de ter, inclusive alguns amigos seus que continuam no cursinho lutando por ela, é sua, toda sua! Agora, então, a admiração é quase sublime: você é o cara, o tudo de bom, o orgulho da família! Sua mãe faz questão de contar pra todo mundo, suas tias o paparicam, seus vizinhos te parabenizam, seus amigos organizam aquele churrasco e até aquele pessoal que não dava muita bola pra você passou a ser mais simpático desde então. Você é pura felicidade: vai entrar na Ufes, sua turma será a melhor de todos os tempos e você vai ser o melhor médico do mundo! Agora, você não é mais um fulaninho de tal: é o Doutor da família – ou mais um, mas consideremos aqui o pioneirismo. No início, acha até estranho, depois sente o orgulho próprio de calouro, mas logo passa a considerar normal ser chamado de Dr. O fato de você não ter concluído nem o ciclo básico do curso não interfere em nada: “Tô com uma dor de cabeça, Dr. O que devo tomar?”, “ O que é essa dor no estômago que eu sempre tenho, Dr.?” ,“Dr., sua vó ta passando mal! Corre aqui pra ver o que é que ela tem!”. Mas você é prudente: explica pra todo mundo que é um simples estudante e sabe muito pouco, ainda. Ou então, incorpora o personagem, sai dando diagnóstico de toda e qualquer moléstia de seus parentes e amigos. Afinal, você é “quase médico”, não é?
Quando ingressou na faculdade, você tinha uma certeza: vou ser cirurgião! Ou então, pediatra, ou clínico, gastro... Pode ser também que você não tivesse tanta certeza, que tenha decidido esperar pra conhecer melhor e decidir a sua área. Mas os seus admiradores, esses sim já sabem muito bem o que você deve ser: “Nossa! Você tem cara de pediatra! Vai cuidar de todos os meus filhos!”, propõe uma amiga. Sua tia tem outra opinião: “você devia fazer cirurgia plástica, vou precisar daqui a algum tempo”. Seu tio discorda: “faça geriatria! Quando você se formar, já terei idade suficiente para ser seu paciente.” A mamãe acha que o bebê dela deveria ser clínico geral: “eu gosto tanto do meu médico, vou lá todo mês. Queria tanto que você fosse como ele...” E o seu pai? Escolhe ortopedia, logicamente: “estou sempre cheio de dores musculares, no corpo todo, alguém tem que cuidar disso.” Também há aquele vizinho, que jura que você tem cara de endocrinologista, principalmente depois que você disse que ele deveria ir controlar a alimentação, já que é um diabético. Sua prima escolhe dermatologia, é claro: “preciso de alguém pra deixar minha pele liiinda”. Sua irmã discorda: “ele tem cara de neurologista, como aquele que me atendeu no mês passado e que passou um remédio mara pra tratar minha enxaqueca!”
E por aí vai... Até o fim do curso, já terão definido todas as especialidades pra você que, das duas, escolhe uma: ou diz, de uma vez por todas, que quem decide isso é você e mais ninguém ou, como é o Dr. Querido, dá um sorriso simpático cada vez que alguém decide seu futuro, usando a antiga e infalível técnica do “sorria e concorde”.
Pois é. E você pensava que escolher o curso, na época do vestibular, tinha sido o mais difícil...

(Jeq*)

segunda-feira, 20 de abril de 2009

XXIX


Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.


Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés -
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meu olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma...

(Fernando Pessoa - O guardador de Rebanhos)