sábado, 30 de novembro de 2013

Ler o Mundo

"- a verdade é que, embora presumindo o contrário,dedicamos, de modo geral, pouco estima às especulações intelectuais - mas amor à frase sonora,ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara. É que para bem corresponder ao papel que,mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda,não instrumento de conhecimento e ação.
(...)
Não lhe ocorre um só momento que a qualidade particular dessa tão admirada "inteligência" é ser simplesmente decorativa, que ela existe em função do próprio contraste com o trabalho físico, por conseguinte não pode supri-lo ou completá-lo, finalmente, que corresponde, numa sociedade de coloração aristocrática e personalista, à necessidade que sente cada indivíduo de se distinguir de seus semelhantes por alguma virtude aparentemente congênita e intransferível, semelhante por esse lado à nobreza de sangue."
(Sérgio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil")


"O que gostaríamos de dizer aos nossos amigos e amigas é que a nossa geração não aprendeu – mas precisa – que os livros não são simplesmente bons. A valorização da cultura letrada, em detrimento da oral, esqueceu de nos contar que escritores e escritoras são pessoas comuns, impregnadas de cultura e intenções revolucionárias ou contrarrevolucionárias. Ainda não aprendemos que os livros escritos e/ou veiculados até hoje, em sua maioria não nos representam – ou pior – depõem contra o nosso povo. Eles nos ensinam, por exemplo, que a história do povo negro no Brasil se esgota ou na escravidão ou na religiosidade ou na culinária – quando, na verdade, o povo negro tem sido o motor que faz com que este país se mantenha economicamente vivo. Nos ensinam(...) que a elite brasileira não tem nenhuma responsabilidade na miséria econômica e intelectual na qual vivemos.
(...)
E o que surge hoje como revolucionário e necessário,em pouco tempo pode se tornar contrarrevolucionário. Precisamos ficar atentos para enxergamos o quanto antes essas mudanças e reformularmos também as nossas estratégias. Isso vale para os livros que escrevemos ou editamos,os saraus que participamos,as bibliotecas que montamos,as pessoas que atendemos em nossos trabalhos sociais,nossos relacionamentos amorosos e todas as nossas bandeiras"

('Dinha e Du')

terça-feira, 19 de novembro de 2013

É sempre mais do que se imagina


"Amanhece com cabelos longos o dia curvo das mulheres. Que pouco é só um dia, irmãs, que pouco, para que o mundo acumule flores frente às nossas casas. Do berço onde nascemos à tumba onde dormiremos - toda a rota atropelada de nossas vidas - deveriam pavimentar de flores para celebrarmos. Nós queremos ver e cheirar as flores. Queremos flores dos que não se alegram, quando nascemos mulheres, em vez de homens; queremos flores dos que nos cortam o clitóris e dos que nos enfaixam os pés; queremos flores de quem não nos mandou à escola, para cuidarmos de nossos irmãos e ajudarmos na cozinha; flores daquele que se meteu em nossas camas de noite e nos tapou a boca para nos violar enquanto nossas mães dormiam; queremos flores de quem nos pagou menos, pelo nosso trabalho mais pesado e de quem correu, quando se deu conta de que estávamos grávidas; queremos flores dos que nos condenaram à morte, obrigando-nos a parir mesmo com nossas vidas em risco. Queremos flores daqueles que se protegem dos maus pensamentos, nos forçando a usar véus e cobrir nossos corpos. Dos que nos proíbem de sair às ruas sem a escolta de um homem. Queremos flores dos que nos queimaram por sermos bruxas e dos que nos encerraram por sermos loucas. Queremos flores dos que nos agridem, dos que se embebedam, dos que bebem e gastam o dinheiro de nossa comida do mês. Queremos flores das que fazem intrigas e levantam boatos. Flores das que não mostram solidariedade para com suas filhas, suas mães e suas noras e das que carregam veneno no coração para as de seu mesmo gênero..."

(Gioconda Belli, em 08/março/2013)