domingo, 5 de setembro de 2010

Cinzas.

Era domingo, dia de sol, mas o céu amanheceu cinza. Desbotado, de uma crueza quase palpável. E palpável se fez acinzentado o tempo, as pessoas, a paisagem. As palavras se tornaram cinza, e cinza eram os olhares e toques, e até os sorrisos verdes, azuis e amarelos foram se acinzentando.
O passar dos dias fez com que cinzento fosse o estado natural das coisas, dos espíritos, dos seres. Não havia mais matizes, não havia sequer o preto-no-branco: o cinza era a totalidade.
Nem a escuridão do anoitecer encobria o cinza. Já havia se espalhado, se alastrado em passos sutis e invadido os dias, os meses, os anos, as vidas.

Num dia cinza como outro qualquer, surgiu, não de repente,  mas  com uma leveza irresistível e imponente, aquele ser  que também era cinza, mas que não havia permitido acinzentar o  seu olhar. Ah... aquele olhar. Ela jamais soube explicar qual era a cor dos seus olhos: poderia ser azul como o mar ou como o mais negro ébano. Diante daquele olhar, os olhos eram detalhes. Havia uma luz, um fulgor, maior do que todo o cinza do mundo. Não havia dúvidas de que aquele olhar era o único capaz de enxergar o mundo de outra cor, capaz de ver  além do cinza.

Até hoje ela revolve a imensidão cinza, tateia a escuridão cinzenta, foge do vento cinza, em busca da luz daquele olhar.
Ela sabe que essa é a única forma de enxergar através da neblina.
Depois daquele olhar, ela sabe que há mais no mundo do que o cinza permite enxergar.
Depois daquele olhar, ela  não é a mesma.
Depois daquele olhar, ela sabe que vai passar a vida inteira esperando  aquela estranha luz.

(Jeq*)

Nenhum comentário: